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O artigo "Deixando o X para trás na linguagem neutra de gênero" foi originalmente escrito por Juno em 1 de agosto de 2013.

Link original que não está mais disponível: http://naobinario.wordpress.com/2013/08/01/deixando-o-x-para-tras-na-linguagem-neutra-de-genero/

O artigo foi atualizado em 13 de setembro de 2014 e republicado em 1 de novembro de 2014.

Link do artigo salvo na "Internet Archive Wayback Machine": https://web.archive.org/web/20160117042154/https://naobinario.wordpress.com/2014/11/01/deixando-o-x-para-tras-na-linguagem-neutra-de-genero/

Deixando o X para trás na linguagem neutra de gênero

Publicado em 1 de novembro de 2014 por incand.

Atualizado em 13/09/2014 para a Semana da Diversidade da FEA.

Por Juno.

Sobre esta proposta

(Quando aqui falo do “X”, estou falando de construções como “todxs”, “meninxs”, “queridx”, “bonitx”. Embora eu vá me focar no X, porque é o mais utilizado, o mesmo vale para outras utilizações como @, *, entre outras.)

Desde que escrevi esse texto, o que faz um bocado de tempo, muitas pessoas reagiram de diversas formas. Uma boa parte, muito apegada à gramática, não gostou nenhum pouco da proposta porque ela realmente propõe alterações que brincam com o que hoje se considera “certo” ou a maneira “adequada” de falar. Obviamente, ao propor novas formas de fazer linguagem uma pessoa estará rompendo com uma determinada norma. Nunca foi minha intenção trabalhar dentro dos limites da gramática normativa.

Entendemos que muitas pessoas simplesmente não querem se dar ao trabalho. Este é um caso para ser julgado entre os indivíduos. Se você não gostaria de fazer um esforço por outra pessoa, é uma questão ética entre você e o restante da sociedade. Muitas vezes na vida tomamos a decisão de não nos importarmos. Uma pessoa possui certas questões da construção da identidade dela, da forma como ela está tentando se entender, que requerem esforço da parte dos outros. Quando esta solidariedade é suprimida, resta a marginalização daquela pessoa na direção de ter de se guetificar junto com as outras que são como elas, que é o que costuma acontecer com as pessoas trans no geral, seja por não quererem lhes tratar de forma neutra ou por insistirem em dizer ele onde seria ela ou ela onde seria ele.

A linguagem neutra é uma ferramenta para universalizar a possibilidade de superar esta questão de forma que resolva a questão, ela não é uma imposição moral. A imposição moral está nas demandas que fazemos enquanto um povo, e existe hoje a demanda para que as pessoas trans sejam respeitadas e consideradas sujeitos de sua própria liberdade, autonomia e identidade. Muitas pessoas no caminho não irão se dispor a ajudar, e algumas irão se dispor apenas parcialmente. No grosso, é raro que as pessoas se adequem bem à linguagem neutra a não ser que elas consigam entender isto como um exercício calmo, paciente. Isto envolve muitas irritações no processo de aprendizagem porque as pessoas não estão acostumadas a se importar com estas questões.

A linguagem neutra não é um exercício constante, o exercício está em aprendê-la, dispor-se a tentar, e não em exercê-la. A linguagem neutra não é mais difícil do que aprender qualquer outra forma de falar, ela basta ser aprendida, e então poderá ser usada fluentemente. Ela é um conjunto curto e muito rápido de entender, basta desenvolver a prática, o costume. Mas por mais simples e fácil que se torne depois que a pessoa efetivamente tenta, o processo de tentar acompanha um certo desprezo, um certo desdém pela proposta. Nesse sentido a grande maioria das pessoas desistem de serem tratadas de forma neutra. Assim cria-se o conceito da “fase”.

Nós chamamos de “fase” muitas coisas que, através da pressão social, forçamos as pessoas a abandonarem. Por exemplo, uma identidade feminina, que uma pessoa adota, e depois de um tempo volta a apresentar-se da forma como era antes. A isto muitas vezes não se deve simplesmente o fato de “passou” ou “foi uma fase”, mas que foi insuportável tentar, e que foi mais fácil desistir. Nós constantemente desistimos daquilo que queríamos por causa das dificuldades. Não é difícil com pessoas que possuem maiores ambições na construção de suas identidades, que ousam querer ser algo considerado pela maioria como absurdo, irracional, anti-científico.

Eu já pedi às pessoas que me tratassem de forma neutra, depois pedi que o fizessem no feminino, hoje em dia digo-lhes que tanto faz, que façam como preferirem. Acaba que a pessoa não consegue se sentir confortável com nada, e perdura um sentimento constante de alienação em relação ao gênero e todas as suas categorias. O acesso negado a todas elas. A incompatibilidade com qualquer coisa. É um fato de uma sociedade onde nossos potenciais estão extremamente castrados. As pessoas não participam desse sistema por má fé, não negam o tratamento neutro porque querem o pior (ao menos não todas), mas elas acabam executando esta ordem, a ordem de manter as bases do nosso mundo, assim como nós o conhecemos, exatamente como estão.

Para aprender linguagem neutra e usá-la basta querer. Ela é útil por diversos motivos. Se você não gostaria de usá-la, você pode usar o X ou pode falar como preferir. A questão é que neste processo você estará decidindo se afastar de um determinado grupo de pessoas, e que estas pessoas estão extremamente isoladas devido à decisão constante da maioria de fazer isso. Através deste mecanismo não só as pessoas trans estão excluídas, no desemprego, nos modernos circos dos horrores da mídia de massa, mas todo o povo oprimido. Tem a ver com a forma como a cultura e a opressão exercida pelas elites se atravessa e molda nossa visão de mundo. Quanto mais solidariedade, maior será o poder do povo. Venha de onde vier.

Peculiaridades das pessoas não-binárias

Pessoas trans frequentemente possuem preferências por formas de se falar que estão desalinhadas com aquela designada a elas. Na maioria, mulheres trans preferirão serem tratadas no feminino, homens trans no masculino e muitas pessoas não-binárias de forma neutra, ou no masculino ou feminino de forma alinhada ou não à designada a elas no nascimento.

Nos três problemas enumerados acima, podemos notar que as pessoas trans não-binárias possuem peculiaridades ao lidar com todos eles.

Em (1), não existe uma passabilidade para pessoas não-binárias. Nunca aparentam-se não-binárias porque ninguém jamais presumirá, ao olhar para como se vestem, falam, isto é, “como são” que não são “nenhum dos dois”. Sempre será presumido que uma pessoa é homem ou mulher. Desta forma, é virtualmente impossível que alguém “acerte” estas marcações, exceto nas raras vezes que o fizerem não porque percebem serem pessoas não-binárias, mas porque não conseguem decidir se as encaixam como homens ou como mulheres. Dessa forma, estarão sempre à margem das soluções que indicam às pessoas que simplesmente “chutem” de acordo com como a pessoa se apresenta.

Desde a publicação deste texto originalmente, foi levantado que algumas pessoas podem ser dar a entender serem não-binárias pela sua aparência. Este entendimento é falso, faz sentido somente ao observador. Androginia não é sinônimo de não-binariedade, uma pessoa cis (que não é trans) pode muito bem ser extremamente andrógina e uma pessoa trans pode muito bem aparentar ser do gênero considerado “oposto” ao dela, bem como pode ser andrógina também.[1]

Em (2), não existe nenhum país no mundo onde pessoas não-binárias possam efetivamente, de forma regulamentada, serem reconhecidas em seus documentos. É muito mais complicado que uma pessoa não-binária consiga ser reconhecida nas burocracias do Estado, das instituições, de universidades, empregos, etc como completamente fora das opções do que como uma delas, ainda que essa posição seja contestada. Frequentemente o caso é não o de quem é expulso de uma categoria, mas o de quem não possui uma categoria.

Algumas pessoas levantaram que há países no mundo onde isto é sim possível. Estou ciente destas notícias e agradeço se alguém quiser encaminhar-me quaisquer novas notícias, mas se você ler o acima disposto verá que não, não há país no mundo onde as pessoas trans não-binárias possam de forma regulamentada e desburocratizada fazer isso. Assim como no Brasil isto não é realidade nem para homens e mulheres trans. Precisar da aprovação de um juiz ou de um parecer médico não é satisfatório.

Em (3), os gêneros das pessoas não-binárias costumam ser muito mais difíceis de explicar às pessoas, de forma que “não ser”, “ser nenhum dos dois”, ou ser qualquer um deles de forma não-normativa (bigênera, multigênera, pangênera, etc) será algo encarado como uma invenção, uma tolice, etc, porque estas experiências são apagadas, e estão sempre na margem. É certamente mais complicado explicar a alguém que você não é nem homem, nem mulher do que explicar que você é homem ou mulher, apesar de não assim terem te designado no nascimento.

Estas dificuldades demonstram no geral como o sistema está orientado no sentido de preservar uma estrutura rígida, de dois gêneros. Todas as práticas que retornam a estas afirmações são dificuldades encaradas porque organizamos o mundo ao redor destas duas categorias.

Por todos esses motivos, é importante perceber que construções neutras de gênero são importantes para tornar o mundo mais vivível às pessoas trans não-binárias, e que elas ocupam um local importante nesta discussão sobre neutralidade e sobre o uso da linguagem demarcada. Em nossos cotidianos, as marcações de gênero e as tentativas de torná-las neutras ou melhores frequentemente falham nesse quesito específico, como em “todas e todos”, “homens e mulheres”, “senhoras e senhores”, “masculino e feminino”, “todos/as”, “srs(as)” etc.

Se você recebeu esse texto de uma pessoa não-binária que queria que você aprendesse como referir-se a ela: por favor, tenha empatia e não trate isto tudo com leviandade. Isto é importante e são pouquíssimas as pessoas que realmente se importam. Tente ao máximo que conseguir, não se acanhe em parar no meio da frase e pensar ou pedir ajuda, aprenda junto com a pessoa e aos poucos você pegará o costume e falará naturalmente com ela. Não é um bicho de sete cabeças e conjuntamente é possível que consigam aprender cada vez melhor.

Por que abandonar o X?

Como falar de forma neutra sem o uso do X?

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